sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

O Epitáfio de Filomeno (Contos de Warte)






Morreu Filomeno de Jesus da Silva. Seco, enrugado, encovado, macilento, quase crocante e quebradiço ao toque. Não que alguém tenha insistido em tocá-lo em seus últimos momentos, mas esta era a aparência de alguém que, ainda em vida, estava 99,9% mais próximo do Reino Mineral do que do Reino Animal. Havia meses que estava clinicamente neste estado. Talvez desde o nascimento ele vinha se achegando ao Reino Mineral com uma insistência bubalina. 

Essa intimidade com o mundo mineral podia ser percebida, por exemplo, em sua atávica atração por fósseis e pedras. Colecionava-os desde a mais tenra idade. Nenhum de seus fósseis, no entanto, foi capaz de resistir às intempéries e sobreviver o tempo suficiente para assistir ao desenlace de seu quase inorgânico possuidor: viraram pó muito antes de Filomeno vislumbrar o portal da mineralidade. Ele viveu anos sem conta, começando como uma diáfana mas insistente nuvenzinha de poeira levantada por fraco sopro de vida. Entretanto, este universo é certeiro e nada escapa do destino de chegar a um fim em sua forma de ser, e Filomento estava havia muito em vias de deixar de ser a si mesmo, de ser aquela forma de se exercer numa longa e lenta intenção de consolidação e de transição de pó para gente e de gente para um arenito, um granito ou um andesito. Entretanto, só havia conseguido chegar, quando do derradeiro suspiro, a um frágil, friável e esfarelento torrão mal consolidado. Nunca haveria de aceitar polimento, nunca seria esculpido, não serviria nem de calço de algum sofá de pé quebrado ou mesmo de uma pedra em uma improvável intifada. Não serviria para nada. Quando muito, se esquecido num leito de enxurrada, seria aos poucos levado ao mar como uma diluída pitada incapaz de salgar o que quer que fosse. Tanto tempo para um fim tão pífio.


Filomeno morreu disso: de tanto exercer a si mesmo como uma frágil intenção entre Reinos.