quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

A verdadeira história por trás de um pequeno estabelecimento gastronômico e a origem dos seres que vagam pela noite sem rumo e sem falar coisa com coisa, apesar do calor.





Contos de Warte...

Foi de repente. Era outubro e tudo estava insuportável, porque tudo fica insuportável quando a temperatura chega a 42 graus, sem vento, e a cerveja nos bares já vem morna para desgosto e desespero dos que tentam se refugiar num alcoólico estado de ser, sem se importar com a ressaca garantida do dia seguinte. O primeiro deles foi avistado às 19:55 hs. Surgiu do nada, talvez de um bueiro que exalava miasmas, baratas e caranguejeiras do tamanho de um prato, mais peludas que certo artista da Globo. Repetia, alucinado “macumba com uma mão da tumba de tutancamon”, babando e cuspindo em quem se aproximasse. Olhos, esbugalhados, vermelhos e solapados por assombro e terror. Na esquina da rua Cuiabá, às 20:11 hs, apareceu outro, com o mesmo comportamento bizarro, mas sem dizer nada. Abria a boca como se fosse pronunciar alguma coisa, mas dali nada saía a não ser um bafo de frutos do mar com pimenta biquinho. Este já estava só de cuecas esfarrapadas, descalço. Em 15 minutos, surgiram mais dois nestas condições, um gritando, nu e suado, e outro correndo e parando para gesticular como se tentasse abater no tapa alguns dos centos de morcegos que residem nos flamboyants das ruas. Quando era 21:00 hs, já haviam aparecido mais de 15 dessas pessoas estranhas, assustadoras, contabilizadas no mormaço noturno. Ao amanhecer, formavam já uma horda comparável ao bloco Cibalena, famoso no carnaval local, mas com a diferença que a música era substituída por uma cacofonia de gritos, grunhidos, vozes, choros e gargalhadas desses verdadeiros zumbis aparvalhados, não deixando ninguém dormir num raio de 11 quarteirões ao redor. Aquilo abalou a cidade em seus alicerces.

Para abalar uma cidade como aquela, onde tudo é tolerado e a lascívia, a loucura, o desleixo, o desespero e a indolência se misturam num amálgama que gerou uma gente muito festeira e meio besta, somente algo muito além da conta. E essa horda misteriosa era exatamente muitíssimo além da conta. O medo tomou conta de todos, porque as pessoas afetadas eram bem conhecidas, em sua grande maioria. Médicos, dentistas, jornaleiros, vendedores de salteñas, travestis, carnavalescos, professores, donos de lotéricas, políticos, biólogos, mães de santo, jornalistas, funkeiros, pastores, psicólogos, fazendeiros, escritores e mais de um padre católico e duas freiras, Enfim..... gente dali. Formou-se, às pressas, uma comissão suprapartidária, multirracial, ecumênica, transfronteiriça, multinstitucional, multidisciplinar, holística, sexualmente representativa e policlínica para avaliar as coisas daquela absurda epidemia. A força-tarefa investigou antenas de rede de telefonia celular cujas emissões pudessem estar afetando mais do que o calor crônico e a desidratação as capacidades mentais dos habitantes indiscriminadamente, as águas distribuídas na cidade em canos velhos e corroídos e que pudessem estar permeáveis a algum composto natural danoso ou enteogênico, poluentes emitidos por uma antiga fábrica de cimento que inadequadamente ainda funciona no meio da área urbana, poeira de caminhões de minério de ferro que mancha de vermelho uma cidade antes famosa pela brancura, gases do pântano que rodeia a cidade que porventura começassem a ser exalados em função das mudanças climáticas globais que ameaçam a humanidade, verduras vendidas na feira e trazidas do país vizinho por uma gente trabalhadora mas discriminada que resolvera vingar-se de forma torpe, carne vendida nos açougues oriunda dos verdejantes pastos nativos da região que talvez pudessem conter alguma planta danosa comida pelo gado e cujas toxinas pudessem estar sendo depositadas nas carnes devoradas pelos habitantes locais de forma pantagruélica, mosquitos que infestam eternamente a cidade e que pudessem estar transmitindo novos vírus desconhecidos pela ciência e que ao longo dos séculos apenas produzissem um ou outro bocó na população, emissões de plasma coronal pelo Sol naquele dia e nos dias anteriores que pudessem estar afetando as sinapses cerebrais humanas, e tantos outros motivos suspeitos. Entretanto, nada, nenhum padrão foi encontrado capaz de explicar o estranho fenômeno.

Ao final da tarde do dia seguinte, ainda sob os acachapantes 42 graus à sombra, a horda continuava aumentado. O boato era que o prefeito também havia sido acometido e estava sobre o telhado da igreja matriz de Nossa senhora dos Remédios comendo telhas e pombos incautos e grilos fugitivos do calor. O pânico tomava conta de tudo e de todos. Começaram encontrar aqueles zumbis já subindo pelos morrotes que rodeiam a cidade, e até já saindo pelas estradas que deixam a urbe. Então, num rompante de bravura e zelo em defesa da pátria, um isolamento foi providenciado pelas forças armadas na ponte que conecta a cidade com o resto do país. A esperança era que o rio funcionasse como um fosso de um castelo medieval e que as piranhas dessem conta daqueles que tentassem atravessar a vau as águas escuras e suspeitas em sua fome avida por corpos afogantes.

Eu fugi antes, levando comigo a resposta. Não sei como aquilo tudo terminou, e qual foi o destino da cidade e de sua gente. Na verdade, eu nunca mais quis saber. Entretanto, guardei comigo o fato de que a origem daquela situação inusitada estava num risoto de camarão no qual foi cozido um pentelho grisalho num pequeno e conhecido restaurante da cidade. E eu não falo mais sobre isso.

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